"Reforma cria “imposto seletivo” para desincentivar consumo de certos bens, mas especialistas apontam que tributo pode fomentar mercado ilegal"
(Matéria publicada no portal Jota em 21/05/2024)
O Imposto Seletivo (IS), conhecido como “imposto do pecado”, está no centro da discussão da nova fase da reforma tributária sobre o consumo, na proposta de regulamentação enviada pelo Executivo ao Congresso (PLP 68/2024). Este dispositivo estabelece uma tributação adicional para os bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. A ideia seria inibir o consumo de tais itens. No entanto, especialistas apontam que o aumento excessivo da tributação por meio do IS pode levar ao crescimento do mercado ilegal e, consequentemente, à queda da arrecadação.
Na atual proposta apresentada pelo Governo Federal no dia 25 de abril os produtos sujeitos ao IS são cigarros, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas (como refrigerantes e energéticos), veículos, embarcações, aeronaves e bens minerais extraídos (como minério de ferro, petróleo e gás natural). A proposta que está em discussão no Congresso, porém, não estabelece a alíquota que vigorará sobre cada um destes itens e a definição só será realizada posteriormente, por lei ordinária.
Aqueles que demonstram receio com o IS temem que a alíquota do imposto seja excessiva. Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), é um dos que argumentam que uma grande alta de preço, ao invés de reduzir o consumo, levará a população a recorrer ao mercado ilícito, que por não estar sujeito ao regime de tributação mantém seus valores baixos. “Se houver aumento da carga já elevada será impossível conter o aumento da participação do ilegal”, afirma.
O estudo “Elasticidades no Mercado Brasileiro de Cigarros”, de 2022, conduzido pelos economistas Mario Margarido, Pery Shikida e Daniel Komesu e publicado na Revista Práticas de Administração Pública, analisa o que aconteceu com o mercado de cigarros no Brasil após o aumento da tributação sobre o produto em 2012. De acordo com os especialistas, a expectativa de que o aumento de preço poderia impulsionar a queda do consumo de cigarros vem da presunção de que o cigarro é um produto para o qual não há substituto. No entanto, a pesquisa também mostra que na realidade há sim uma alternativa, que é o cigarro ilícito, proveniente do contrabando.
Os pesquisadores mostraram que, após o aumento da tributação em 2012, houve um crescimento significativo da fatia do mercado ilegal, o que ocasionou brusca queda da arrecadação tributária ao ponto de, em 2019, o mercado ilegal chegar a representar cerca de 57% dos produtos comercializados no país. No mesmo ano, a evasão fiscal do setor superou a arrecadação tributária.
Essa fatia só volta a diminuir em 2020 devido à pandemia de Covid-19 e à escassez de matéria-prima, que levaram ao aumento de preços também do produto ilegal.
Ao JOTA, o professor da Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná) e um dos autores do estudo, Pery Shikida, disse que “o aumento sistemático da carga tributária do cigarro está fadado ao fracasso, uma vez que existe um produto substituto para o cigarro lícito”. Na opinião do especialista, “está mais do que na hora de alterar a atual política tributária sobre o cigarro”.
O mercado de cigarro ilegal no Brasil é, de fato, enorme. Uma pesquisa de 2023 do instituto Ipec Inteligência aponta que a cada 100 cigarros comercializados no Brasil, 36 eram ilegais. Isso significa que R$ 9,8 bilhões circularam ilegalmente no país em decorrência deste mercado. O caso dos cigarros ilícitos exemplifica o que pode acontecer também com outros produtos que estarão sujeitos ao Imposto Seletivo.
A visão dos economistas e do presidente do FNCP é respaldada pelo advogado tributarista Luiz Gustavo Bichara, sócio-fundador do escritório Bichara Advogados. Ele diz que o mercado ilegal deve crescer caso haja um aumento excessivo no preço dos produtos sujeitos ao IS. Bichara afirma que isto deve acontecer não apenas com cigarros, mas também com bebidas alcoólicas, refrigerantes, energéticos, entre outros bens.
“O governo perde arrecadação, além de ter que arcar com os custos do combate à criminalidade e aos efeitos deletérios desses produtos piratas”, completa.
Se concretizada a previsão de que um aumento exagerado da alíquota levará a um crescimento do mercado ilícito, os impactos para a sociedade serão diversos. Vismona explica que há prejuízos ao consumidor em termos de parâmetro de qualidade, uma vez que produtos ilegais não respeitam regulamentos técnicos. Além disso, há um financiamento de organizações criminosas e milícias, que já atuam na distribuição de produtos ilegais, especialmente cigarros e combustíveis. Por fim, há um prejuízo óbvio para as contas públicas, devido à sonegação fiscal.
Os defensores da atual proposta do Imposto Seletivo tentam tranquilizar os que temem altas alíquotas argumentando que o tributo tem natureza extrafiscal, ou seja, não visa a arrecadação. O secretário extraordinário para a Reforma Tributária, Bernard Appy adiciona ao rol de argumentos o fato de que a União é a única responsável pela cobrança, mas fica apenas com 40% do valor – o resto será dividido entre estados e municípios. “Quem vai querer usar, para fins arrecadatórios, um imposto que tem o ônus de cobrar e fica com apenas 40%?”, disse em evento da Câmara Americana de Comércio para o Brasil (Amcham Brasil) no dia 26 de abril.
Mesmo assim, o tributarista Luiz Gustavo Bichara acredita que “existe o risco desse imposto ser utilizado como instrumento para aumento de arrecadação”. Ele explica que a expectativa do governo é que entrem R$ 50 bilhões anualmente por meio do IS, mas esse valor corresponde à quase totalidade do que é recolhido hoje via IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), que incide sobre uma gama muito maior de produtos. “Muito difícil a conta fechar”, opina o advogado.
Além disso, há um teto para a arrecadação via IS, que quando ultrapassado implicaria na redução da CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). “Existe um discurso de que não valeria a pena arrecadar com o IS, pois isso implicaria na redução da CBS, mas não é bem assim. De fato, se prevê uma redução da alíquota de referência da CBS, vinculada a eventual aumento na arrecadação do IPI”, explica. “Mas essa alíquota de referência não obriga a União, que pode optar por uma alíquota maior da CBS e, com isso, manter a arrecadação do IS”, completa.
Em suma, Bichara defende que “o que não pode ocorrer é ter previsões na legislação que piorem algo que já funciona para garantir uma maior arrecadação”. “O aumento desmedido terá efeito contrário”, pontua o advogado.
Dados compilados pelo FNCP junto aos setores produtivos apontam que o Brasil deixou de arrecadar no ano de 2023 cerca de R$ 441,85 bilhões por conta da venda de produtos ilegais. Entre os 15 setores que mais perderam por conta do mercado ilegal estão bebidas alcoólicas (2º lugar), combustíveis (3º lugar) e cigarros (10º lugar).
Portanto, de acordo com os dados e a opinião dos especialistas, ainda que o objetivo principal do IS seja relacionado ao comportamento do consumidor, é preciso considerar que se essa tributação levar a um aumento do mercado ilegal, haverá perda significativa de arrecadação, com prejuízo financeiro para todos os entes da federação.
Os especialistas ouvidos são unânimes em opinar que o que defendem não é uma suspensão ou redução dos tributos sobre os produtos englobados pelo Imposto Seletivo. O advogado Luiz Bichara enxerga uma solução viável dentro da proposta que está colocada. Ele diz que é o momento de congressistas e sociedade civil trabalharem pela aprovação de um projeto com alíquotas justas e transparentes. “De forma geral, a proposta é positiva e contribuirá para melhoria do sistema tributário, ainda que alguns ajustes sejam necessários”, opina.
Perry Shikida, por sua vez, afirma que para estabelecer uma regra tributária que incida sobre cigarros é preciso considerar tanto o preço do cigarro ilícito, quanto do lícito. Isso porque, explica Shikida, há “vasos comunicantes” entre os dois mercados. “A Reforma Tributária abriu uma nova janela de oportunidade para modificar esse posicionamento conservador da política tributária atual”, defende o professor. Vismona aponta ainda para a necessidade de uma articulação regional no tema dos tributos, uma vez que boa parte dos produtos ilícitos chegam ao Brasil por contrabando, vindo de países como o Paraguai, onde o imposto sobre cigarros gira em torno de 13% – frente a 70 a 90% no Brasil. Para ele, o ideal seria encontrar um equilíbrio tributário entre os países.
Além disso, dentro do Brasil, o presidente do FNCP defende medidas para melhorar o combate ao comércio ilícito, com ações integradas entre as polícias e aumento de recursos humanos, financeiros e tecnológicos tanto para as forças policiais, quanto para a Receita Federal.
Segundo Vismona, estamos diante de um grande desafio e importante momento. “A sociedade está sendo cada vez mais ameaçada. Portanto, diminuir o espaço do mercado ilegal deve ser uma política estratégica do Estado”, afima.
“O mercado ilegal no Brasil cresce por conta do preço, em consequência da alta tributação, que só incentiva a ilegalidade”, explica o presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade.
Segundo o presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), uma tributação excessiva do novo Imposto Seletivo, previsto na regulamentação da reforma tributária, pode estimular o mercado de produtos ilegais